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Tentados no deserto 

                                                                                                            Por Djalma Andrade

 

 

 

É muito interessante notar que o confisco da filosofia de Jesus ao discurso religioso esvazia o caráter psicossocial das mensagens desse filósofo. Em primeira instância, é possível perceber isso na tomada de posse do termo “profeta” que se torna, basicamente, apanágio do religioso. Um erro crasso!

 

Não nos deve ser estranho se ouvirmos alguém definir que o profeta é um homem ou uma mulher enviado por Deus, com o dom de adivinhar para, então, prever o futuro.  Isso faz parte do senso comum. Mas a pergunta é: adivinhar o quê?  

Os economistas, como ninguém, têm a capacidade de prever como vai estar a balança comercial daqui a dois, três anos ou mais; os administradores de empresa possuem habilidades que lhes permitem fazer investimentos baseados no futuro; os psicólogos, como ninguém, podem prever o comportamento de um certo indivíduo em situações futuras; o médico é capaz de precisar, na maioria dos casos, o futuro da saúde de seu paciente; e os meteorologistas...? Seriam esses profissionais criaturas especiais, enviados por Deus, cada um deles com um dom específico de adivinhação?


Não! Não se trata de adivinhação e nem tampouco de divindade. Não se trata de Deus ou deuses soprando no ouvido de ninguém. O Deus do profeta é a realidade. O profeta não é o grande “enviado”... longe disso. Ele é todo e qualquer indivíduo que, a partir da leitura de uma realidade, consegue antecipar o futuro quer seja de uma situação, quer seja de uma pessoa ou nação. Se economistas, administradores, médicos, psicólogos e meteorologistas são mestres em tal arte, Jesus era doutor.


É difícil tomar algumas das metáforas filosóficas profetizadas por Jesus e não notar a sua realização na vivência psicossocial do mundo atual. Há mais de dois mil anos atrás ele já conseguia antecipar o futuro que, para nós, hoje se torna presente e real. De forma genial, ele resume sua profecia, acerca de nossa sociedade atual, a partir das três tentações no deserto. Mitologicamente ou não, elas se antecipam ao início da missão de Jesus, como uma espécie de preparação à busca pela independência, visto ser no bojo desse “acontecimento” que Jesus deixa seus pais e vai cuidar de sua missão, ou seja,  de sua vida.


Nas três tentações do deserto, Jesus aponta para três questões conflituosas que hoje constituem o grande umbigo do psicossocial: a mágica do virtual; prostração às promessas do capitalismo e a sociedade do espetáculo. 


Na primeira tentação, Jesus é convidado a transformar pedra em pão, e a negação a esse feito aponta para o fato de que a busca pela independência e liberdade humana não se inscreve no plano da mágica, que não nos oferece o mínimo de tempo para digerimos o significado das coisas, inclusive de nós mesmos.
Naquele tempo, parece que Jesus já apontava para a sociedade mágica da mídia de hoje. A todo instante, somos tentados pelo bombardeio de informações, as quais  digerimos, em passo de mágica, sem pelo menos nos perguntar pelo real significado de tudo isso. Mas a questão é, se você não está apto a fazer mágica, caber-lhe-á um incômodo lugar no banco dos réus desinformados, e então a crucificação não tarda.  A mágica não para por aí, você precisa se transformar em virtual para ser real. Como pode ser desse mundo uma pessoa que não está inscrita nas redes sociais?  Não pode. No mínimo ela é estranha.


Na segunda tentação, o cenário da mágica dá lugar à prostração, e entra em jogo as promessas da facilidade. Você pode ficar rico do dia para a noite, tudo é muito simples. Você só precisa se prostrar diante do consumismo, e aí se projetar no que você deseja ser, aos olhos da sociedade, a parir de uma aparência. Não me parece conveniente dizer que uma pessoa que veste as melhores roupas e frequenta os melhores lugares seja pobre. Não, não é possível. A verdade é que um simples não a lógica dessa tentação rende um penitente lugar fora dos muros de Jerusalém, traduzindo, exclusão social. Nesse lugar, o indivíduo amargura o complexo das “margens” onde cada um se culpa pelo seu próprio “fracasso”, um verdadeiro inferno que arde dia e noite, sem parar. O diabo é mesmo aquilo que separa. Não nos esqueçamos de que o termo diabo é derivado do grego -  διαβολικός (diabólicos), que significa tudo aquilo que separa, seleciona ou divide. É possível observar isso com maior clareza nos muros que se erguem entre as classes sociais, muros cimentados pelas promessas do διαβολικός.


A terceira e última tentação passa pelo crivo do espetáculo. Jesus é convidado a se jogar montanha abaixo, pois lhe é garantido que nenhum ferimento lhe ocorrerá. Show e aplausos devem compor o resultado final desse feito. Nessa sociedade do espetáculo, vale tudo, menos se machucar. Em um salto, o indivíduo é tentado a desrespeitar a gravidade da subjetividade alheia, e o cume das relações superficiais é a grande garantia de que ninguém sairá ferido dessa relação e de outras mais. E aí as pessoas se pisam, se cospem... e valores sério, como namorar, casar, família descem ensaio de tubo abaixo, em um exercício laboratorial de experimentação, mas que amanhã podem ser descartados.  E o espetaculoso é que ninguém sai ferido, a fórmula é perfeita.  Bravo, bravo, bravo! Palmas. Mais palmas. Aplausos.


 Carregamos a triste e penosa cruz de uma ilusão que nos diz que somos seres livres e independentes; quando, na verdade, somos reféns das inúmeras tentações que não pedem muito de nós não, apenas um simples sim. Ao contrário de Jesus, ainda estamos na “casa” de nossos pais, sem perspectiva de saída e de futuro. Opa, futuro? Deixemos essa parte para o profeta. Ainda bem que não sou um! 

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