
PSICOLOGIA E COMPORTAMENO
O LOUCO E A LOUCURA
Por Djalma Andrade e Idalina Krause
Entender que o louco, em outrora, tivera um lugar na sociedade, é no mínimo instigante. Instigante porque a sociedade atual nos dá outra realidade, na qual não há espaço para o louco; nesse novo cenário social, o destaque agora é da loucura, em outras palavras, o insano não tem maior importância do que a sua insanidade.
O insano se punha entre os deuses e os homens, era o mensageiro; de certo modo, o privilegiado... não possuidor da loucura, mas do dom. Dom que o transportava ao mundo dos deuses, mundo da lua... era o lunático. Nessa esfera, louco e loucura era uma só coisa. Ambos se confundiam no exercício diário de suas atividades.
A partir da evolução industrial, o louco é separado de sua loucura e, por conseguinte, do convívio social. Nesse sistema, não há espaço para o “mensageiro”. Novo ritmo se impõe, e a produtividade dita o rumo do louco e da loucura, agora separados. No novo regime, onde se despontam olhares para a produção e consumismo, o louco não é o melhor exemplo: nada produz, é a verdadeira imagem do “vagabundo” disfarçado. Com isso, nada mais justo do que tirar essa gente do convívio social. É aqui que o louco é separado de sua loucura: enclausura o insano e liberta a sua loucura, a Ciência e as indústrias farmacêuticas têm singular interesse nela. A partir de então, a Ciência muito se esforçou para avançar nessa área, mas os resultados são tão limitados quanto ao olhar que lançamos ao arco-íris: vemos que o arco-íres é composto por várias cores diferentes, mas não sabemos dizer, exatamente, onde cada uma começa e termina.
Eis o principal desafio que a loucura impõe à Ciência: onde ela começa, onde ela termina?
Em meio á usura científica, a loucura se transforma em doença mental e como patologia será teorizada e vivida política, social e culturalmente. O internamento passa, aos poucos, um valor terapêutico como consequência do reajustamento de gestos sociais, políticos e morais que desde mais de um século condenaram a loucura e o desatino.
As significações essenciais da loucura passam a se modificar com a Psicologia que está em vias de surgir. O conteúdo do louco clássico é retomado via conhecimento psicológico, baseado nas formas menos refletidas e mais imediatas da moralidade. A relação médico-doente tem, em Freud, plena aceitação com o surgimento da Psicanálise. Na direção dos médicos, se encaminham as estruturas de internamento organizadas por Pinel e Tuke. A alienação torna-se desalienante porque, no médico, ela se torna sujeito. O médico, enquanto figura alienante torna-se a chave da Psicanálise. “A psicanálise pode desfazer algumas das formas da loucura; mesmo assim, ela permanece estranha ao trabalho soberano do desatinado. Ela não pode nem libertar-se nem transcrever e, com razão ainda maior, nem explicar o que o que há de essencial nesse trabalho.”(FOUCAULT, 1997)
Com maior “liberdade”, o louco se confronta com sua própria verdade. A loucura passará a falar a língua do “ser” humano, no conteúdo daquilo que ele é e no esquecimento desse conteúdo, pois a loucura não se esgota na verdade do louco, mas no seu enigma humano.
É nesse emaranhado horizonte de perspectivas inseguras que lançamos o nosso olhar para o destino da clínica. Aqui, o pensamento de Michel Foucault rejeita as ideias de teorias totalizantes. Sua preocupação é com análise arqueológica das formas de conhecimento e dos discursos, que operam historicamente nas instituições. Em sua obra O Nascimento da Clínica, destaca a forma como a Medicina moderna trouxe um novo recorte e com domínio se volta para o espaço do corpo individual. Surgindo daí um novo discurso, a Epistemologia da idade clássica caiu por terra e fez emergir novos signos, palavras, termos e jogos discursivos entre o falso e o verdadeiro.
A clínica professa, não produz conhecimento; é classificatória, já que o sintoma é o signo da doença. A Medicina dos sintomas abre lugar à Medicina dos órgãos. Um olhar vertical do médico observa a forma patológica da existência, seus tecidos íntimos lesionados explicam toda uma sintomatologia.
O sofrimento do louco e seu isolamento se transformam em adoecimento e os hospitais e clínicas tornam-se lugares possíveis desta manifestação. O olhar clínico tem nos prontuários suas fontes de consulta, distantes dos registros vivos de uma história de vida da pessoa.
A relação médico-paciente tornou-se, na maioria dos casos, um olhar sem escuta, investigação quase muda, que não dialógica, sem anamnese. O paciente é objeto e instrumento das ciências médicas. Medo, tristeza, isolamento por fatores incapacitantes que geram sofrimento deveriam servir como base de um processo relacional mais humanitário. Parece que não há vida nestes instantes, nenhum poder criativo que faça acontecer um modo mais original de ver, perceber, trocar ideias, que é o que, de fato, nos reconstitui existencialmente. Parece haver uma anestesia nas percepções!
Faz-se necessário uma nova Epistemologia, uma prática terapêutica diferente, menos medicamentos, mais conversa, menos exames de alta tecnologia, mais olhares atentos sobre a corporeidade, menos internação, mais acompanhamento, menos isolamentos, um pouco mais de liberdade, menos sofrimento, mais atenção e cuidados mínimos. Caso contrário, a clínica cairá provavelmente no esvaziamento, no descaso. Morrerá dos seus próprios venenos; uma tragédia anunciada.
Sem catastrofismo, o destino é inconstante, mas influenciado pelas ações que afetam os rumos da existência, num exercício apaixonado e criativo. Os grandes infortúnios, os fados, se bem aproveitados, podem trazer ganhos inesperados. Interrogar e diversificar os pensares, esse é o grande mistério que alegra e refrigera a alma do médico e do louco que cada um de nós traz em suas entranhas na descontinuidade da vida.
Em suma, quando a clínica descobrir que a loucura tem início no humano e que no mesmo se finda, dará, pois, o seu primeiro passo qualitativo; deixará, então, de produzir o nada revestido de insignificância.
REFERÊNCIAS
___ FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998
___L´Ordre du discours, Lençon inaugurale ao Collège de France prononcèe le 2 décembre 1970.
___ O nascimento da Clínica. Rio de Janeiro. Ed. Forense Universitária, 1998.
___ PLATÃO. Diálogos. Rio de Janeiro. Ediouro, 1986