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Do complexo de Édipo ao complexo de Caim: do assassinato to pai ao assassinato do irmão

                                                                                                                    Por Djalma Andrade

Resumo

Este trabalho tem por escopo fazer uma comparação do mito de Édipo Rei com o mito de Caim e Abel. Levando em consideração o assassino contido em ambos os mitos, tem como objetivo maior analisar o caráter e direção do ato criminoso, e, então,  justificar seus resquícios no psiquismo humano. Minha motivação à produção desse artigo advém de uma concepção que nos faz questionar o caráter primevo do assassinato do pai, exposto por Sigmund Freud. Assim, conduziremos as nossas ideias em trilhas que visam atribuir ao crime de Caim esse lugar primário, sobrepondo, portanto, à originalidade do crime de Édipo Rei. Para tanto, não nos resta dúvidas de que a estrada é extremamente sinuosa, mas todo trabalho que se inscreve no rol das descobertas tem isso como um vento ao seu favor. Avante!

Palavras-chave: complexo de Édipo, complexo de Caim, mito, poder, pai, filho, assassinato, crime.  

Introdução

É de uma pobreza intelectual pensar que a verdade de uma teoria afeta outras teorias em sua veracidade, que prefiro acreditar que não há quem pense assim. Desse modo, no tocante à exposição do complexo de Caim, a complementação do já existente é o melhor colírio que podemos encontrar às nossas turvas visões.

Discutir a questão do poder paterno a partir de personagens mitológicos parece-me ser bastante pertinente. E as figuras míticas que evocamos a essa discussão apontam que nossos passos terão como referência uma relação triangular: de irmão com irmão; de filho com pai; de pai com filho. É esse o panorama que o mito dos dois irmãos, Caim e Abel, oferece-nos para falarmos das implicações de um poder parâmetro às relações que se estendem no cunho psicossocial.

No debruçar sobre a dinâmica do lugar paterno, é inevitável o encontro com o possível poder que daí emana. Mas isso não deve esgotar o nosso contentamento, pelo contrário, é apenas uma faísca à nossa combustão total, que se acende na pergunta condutora de nosso trabalho: em que consiste o lugar do filho em relação ao gozo do pai?

Complexo de Édipo

Para início de conversa, é imperioso que tragamos como parte inicial desse trabalho o trecho de uma carta de Sigmund Freud a seu amigo Fliess:

Encontrei em mim e em toda parte sentimentos de amor em relação a minha e de inveja em relação a meu pai, sentimento que, suponho, são comuns a todas as crianças pequenas (...) sendo assim (...) compreende-se o efeito incrível de Édipo Rei (Freud a Fliess, carta de 15 de outubro de 1897, apud QUINODOZ, 2007, P. 77).

Jean-Michel Quinodoz (ibidem) nos diz que “esse assunto foi retomado em A interpretação dos sonhos, 16 anos depois: ‘O Édipo que mata o pai e casa com a mãe apenas realiza um dos desejos de nossa infância’”. Quinodoz, ainda na mesma obra (p.88), atenta para o fato de que

Em 1913, em Totem e tabu, Freud procura explicar o caráter universal do complexo de Édipo e, particularmente, o papel estruturante que ele desempenha na constituição da personalidade de cada indivíduo. Ele tenta responder a isso lançando a hipótese do assassinato do pai da horda originária pelos filhos, desejosos de conquistar as mulheres que ele possuía. Segundo Freud, esse crime originário seria transmitido em seguida de geração em geração via filogênese, e a culpa ligada a esse assassinato inicial reapareceria em cada indivíduo sob a forma do complexo de Édipo.

Podemos dizer que, muitos anos depois, em O ego e o id (1923b), Freud retoma a questão e acrescenta à noção de complexo de Édipo positivo (ou direto) a de complexo de Édipo negativo (ou invertido), noção fundada na existência de uma constituição bissexual física e psíquica de todo indivíduo desde a infância... O complexo de Édipo completo implica agora quatro pessoas: de um lado, o pai e a mãe, do outro, a disposição ao mesmo tempo masculina e feminina da criança (menino ou menina), fundada na bissexualidade psíquica própria a todo ser humano (ibidem).

            Feita essa breve exposição a respeito do complexo de Édipo na teoria freudiana, atenhamos-nos no ponto que nos é de maior interesse: o crime primevo.

A ação criminosa se dá mediante ao querer dos filhos em ocupar o lugar do pai. O ato é sucedido por um sentimento de culpa, e, em nome da ordem, concluem que ninguém deve mais ocupar esse lugar. É importante compreendermos essa questão porque nela se justifica, em Freud, que não se trata mais de um pai imaginário, e sim, agora, de um pai simbólico. O termo simbólico vem do grego (συμβολικός) e pode ser traduzido como “aquilo que põe ordem”. Freud faz esse caminho para concluir que o lugar do pai é o lugar da lei, que se esvazia da palavra para se encher de significado. É um lugar extremamente poderoso.  É interessante notar que, no tocante ao querer ocupar esse lugar, os filhos que matam o pai, são os mesmos que não se sustentam, na hora “h”, em seus desejos. Parece que essa herança nos foi transmitida, pois não nos é estranho o desejo que as pessoas nutrem em ocupar um lugar de destaque na sociedade ou um cargo de chefia na empresa, mas na hora do vamos ver, a maioria não se sustenta nesse lugar; um fracasso total.

Isso é muito comum entre o mundo dos artistas, especificamente entre os músicos: todos almejam o sucesso, explodem com uma música, mas dela a maioria não consegue passar, retornando, precocemente, ao inotório. Talvez não se trate de chegar nesse lugar, e sim, de nele se manter.

Outro exemplo clássico nos é dado no caso de Daniel Paul Schreber, apontado por Sigmund Freud (v. XII, 1911 -1913) Schreber era filho de um médico muito famoso, e dois pontos nos chamam a atenção nessa sucessão de lugar: o primeiro é que o irmão mais velho de Schreber, no tocante à sucessão, comete suicídio; cabendo, desse modo, a Schreber, esse lugar. Todavia, já na primeira aproximação, o resultado é desastroso e patológico:

A primeira afecção em Daniel Paul Schreber apareceu em 1884, sob a forma de um episódio depressivo hipocondríaco, pouco depois do fracasso de sua candidatura como deputado do Reichstag, quando ele tinha 42 anos e era um simples magistrado... Após alguns meses de tratamento, Daniel Paul Schreber saiu curado. A segunda afecção começou alguns anos mais tarde, em 1893, pouco após sua nomeação para o importante cargo de presidente da Corte de Apelação de Saxe, quando ele estava com 53 anos. Sofrendo de delírio alucinatório agudo, foi novamente hospitalizado... (FREUD, apud, QUINODOZ, 2007, p. 118).

 

O desfeche do caso não nos é importante aqui, porque o nosso objetivo com ele consiste em sinalizar as circunstâncias nas quais Schreber é acometido pelas afecções, as quais coincidem com a aproximação de Schreber do tão referido lugar de poder. É claro que essas considerações não esgotam o caso Schreber em sua totalidade, pois muito pode ser dito a respeito do mesmo; mas, parece-me que, em via psicanalítica, a questão fálica aí se faz presente, independentemente do percurso que se tome para falar sobre o referido caso.

Em suma, por mais que esse teor mítico, encontrado por Freud, em Édipo rei, venha ser questionado, não será o suficiente para ofuscar a genialidade pela qual Freud aproxima o mito da Ciência.

 

Complexo de Caim

           

            Antes de entrar nesse campo minado, sou impelido a fazer uma observação: é de meu interesse deixar claro que esse trabalho se inscreve na escassez de referências bibliográficas. E o motivo nos é posto sem esforços de nenhuma natureza: até então não se tem produção sobre esse tema, da forma que busco abordá-lo. Essa minha observação deve ser compreendida em dois momentos: no primeiro, atentamos para o cuidado e respeito com o leitor; no segundo, não somos ingênuos a pontos de desconhecermos as exigências que se colocam à produção científica; assim, é cauteloso, de nossa parte, justificar o nosso modo de produção.

No caminho que desejamos trilhar, abraçaremos como ponto de partida um ponto que, a priori, não nos diferencia de Freud, em sua elaboração do complexo de Édipo, a saber, o mito.  Da mesma forma que Sigmund Freud encontra elementos no mito de Édipo Rei para elaborar sua teoria sobre o complexo de Édipo e do assassinato primevo, buscamos, assim, recorrer a alguns mitos bíblicos para concluirmos que o assassinato primevo, hipoteticamente, não esbarra no mito de Édipo Rei. Além disso, é certo que pode estar relacionado com o afrontamento do gozo paterno do que com a morte do Pai propriamente dito.

Antes de entrarmos nas desejadas questões, entendemos, aqui, o quão pode ser valioso, ao nosso posicionamento, algumas exposições a respeito do mito. Para tanto, escolhemos para nos ajudar nessa tarefa alguém competente no assunto, o psicanalista Antonio Farjani, autor da obra “A linguagem dos Deuses”. Nessa mesma obra, ele pontua que:

 

 Com toda certeza, nunca os mitos foram tão pouco compreendidos quanto na era atual. Nem mesmo essa espécie de reabilitação a eles conferida neste fim de século, segundo creio, consegue constituir-se num desagravo à altura. No ocidente, os mitos vêm sendo vítimas dos mais variados preconceitos: são considerados por muitos com narrativas ingênuas, poéticas, muitas vezes francamente contraditórias ou até desprovidas de sentido. Muito frequentemente ouvimos dizer que os mitos e religiões antigos decorrem da ignorância do homem primitivo, que apelava para o sobrenatural com o intuito de explicar fenômenos que ele não podia compreender. A ideia de que a religião é uma espécie de substituta incompetente da ciência se encontra tão arraigada na mente do homem de hoje, que às vezes parece uma tarefa impossível tentar demonstrar o contrário. Por outro lado, é interessante notar que um número muito grande de estudiosos tem dedicado a totalidade de suas vidas aos mitos, mesmo considerando-os como fruto da fantasia dos antigos. Os próprios leigos no assunto não conseguem evitar uma sensação de encantamento com os feitos dos heróis e magos que impregnam suas narrativas (FARJANI, 2007, p. 15).

 

 

E o autor adverte: “tenho reiterado, nas minhas explanações sobre o simbolismo contido nos mitos, que se quisermos compreendê-los deveremos em primeiro lugar aprender sua linguagem, que foge completamente àquela que empregamos em nosso cotidiano” (ibidem, p.16).

 

Para Farjani, “queiramos ou não, os mitos não falam a nossa linguagem cotidiana, e à luz desta última, eles nos parecem muitas vezes amorais, ingênuos, ilógicos contraditórios” (ibidem).  O autor defende que

 

No âmbito da comunicação humana, temos acesso a duas formas de linguagem: a digital, com a qual estamos mais acostumados a lidar, e a analógica, mais sutil e usada menos correntemente. A linguagem digital é a dos sinais, das letras e das palavras interpretadas em seu sentido concreto. A linguagem analógica, por seu turno, é a linguagem emitida pelo corpo, pelos gestos, entonação da voz, contração facial, etc. Expressa-se igualmente através dos desenhos e símbolos. Muitas vezes, quando uma pessoa se comunica conosco, vemos essas duas linguagens se contradizer; alguém pode proferir uma frase de amor com desprezo no olhar, ou afirmar qualquer coisa que o tom de voz desminta perceptivelmente. Com certeza, em caso de contradição, a linguagem analógica sempre expressa a verdade mais profunda (ibidem, p.17).

 

É de singular importância que destaquemos, aqui, o exemplo simples e ilustrativo que Farjani nos oferece para estabelecer o funcionamento e diferença entre ambas as comunicações:

Observando os relógios que temos à nossa disposição nos dias de hoje, veremos que eles podem ser divididos em dois tipos: o chamado análogo, provido de ponteiros, e o digital, que consiste num mostrador onde a hora é indicada através dos números que nele aparecem alternadamente. Embora ambos os tipos de máquina efetuem a mesma função básica de fornecer-nos as horas, existe entre eles uma profunda diferença quanto à linguagem utilizada para o cumprimento dessa tarefa. O relógio análogo é o mais preciso: seus ponteiros percorrem passo a passo e de forma integral o círculo de 360 graus de seu mostrador. O relógio digital, por sua vez, mede a trajetória do tempo aos saltos: presumindo que ele marque até os segundos, por exemplo, o espaço compreendido entre um e outro segundo se perde irremediavelmente. Supondo-se a trajetória do tempo como linear (digo supondo porque essa concepção já está obsoleta para a Física atual), teremos que o relógio digital mostra apenas simples pontos onde deveria haver uma reta contínua. Tal comparação leva-nos a uma conclusão sutil: cada relógio apresenta uma vantagem diferente; enquanto o análogo é mais preciso, preenchendo todos os espaços da trajetória do tempo que seu mostrador representa, o relógio digital fica com o mérito de ser o de leitura mais simples (ibidem p. 17).

 

 

No âmbito dessa mesma questão, Farjani nos convida a verificar a existência de um paradoxo, que se coloca entre a linguagem mais simples e seu fragmento, no tocante à compreensão da verdade contida em si:  

 

 A linguagem mais fácil de ser compreendida não contém nada mais que pequenos fragmentos da verdade total! Esta é a mais clara expressão da diferença entre as linguagens digital e analógica. A primeira pode ser clara,  objetiva, de pronto entendimento; a outra, à sua maneira, é obscura, sinuosa, truncada, ambígua, e portanto de difícil compreensão. A vantagem da comunicação digital é a de prestar-se para o "consumo imediato": ela expressa uma ideia e em seguida esvazia-se de seu significado. As palavras utilizadas digitalmente possuem um sentido único, certeiro; são, portanto, rígidas e imóveis como pedras. A linguagem analógica, por sua vez, apesar da maior dificuldade que apresenta para seu entendimento, leva a vantagem de abrigar infinitos significados simultaneamente: a essa qualidade, chamamos sobredeterminação. Desse modo, uma mensagem analógica, não importando o número de caracteres utilizados, pode conter uma quantidade ilimitada de informações. Repleta de metáforas, ambiguidades e aparentes imprecisões, ela pode expressar em uma única frase mais elementos que a linguagem digital poderia reunir mesmo utilizando-se de um número muito maior de caracteres (ibidem pp. 17/18).

 

É no bojo dessa visão, a cerca do mito, que nos pomos a buscar o que o mito de Caim e Abel pode nos revelar, em termo de linguagem analógica, de sua marca no psiquismo humano.

Nas colocações mais refinadas da teologia, a única coisa que diferencia o Deus cristão dos deuses das outras religiões é o movimento de relação com o homem, isto é, se nas outras religiões é o homem que vai ao encontro de seus deuses, no Cristianismo ocorre o oposto, é Deus que vem ao encontro do homem. No sentido teológico, isso se dá porque ninguém mais amou esse homem do que Deus. E a prova desse amor é que ele doou seu filho, como sacrifício, em ação salvífica à humanidade.  Essa é uma questão tão clara à cultura ocidental que dispensa, por si, qualquer referência.

Outro personagem que nos interessa aqui vem do Antigo Testamento, a saber, Abraão. No cerne da mitologia cristã, Abraão é o pai da fé. E essa fé foi testada mediante ao pedido que Deus lhe fez: “Deus pôs Abraão à prova e lhe disse: Abraão! Abraão! Ele respondeu: ‘Eis-me aqui!’ Deus disse: ‘Toma teu filho que amas, Isaac, e vai à terra de Moriá, e lá ofertarás em holocausto sobre uma montanha que eu te mostrarei’”  (Gênesis cap. 22, 1-2).

Por último, tragamos a figura do Faraó. Por mais que tenhamos os nossos referencias a cerca de personagens que marcaram a história por meio de um governo extremamente violento e opressivo, nenhuma delas se aproxima daquilo que fora o Faraó, em termos de opressão, à sociedade egípcia. O poder desse personagem exercido sobre o povo era tamanho que o colocava no lugar de divindade. O livro do Êxito (cap. 7-12) nos conta que Deus, vendo a situação extrema de opressão que caia sobre seu povo, enviou Moisés para ir até o Faraó e pedir a libertação dessa gente, o que foi recebido pelo Faraó como uma grande piada. A negação de Faraó abre caminho à ira de Deus, que responde com envio das famosas “pragas do Egito,” uma de cada vez, com efeitos devastadores. A cada negação do Faraó, Deus lhe enviava uma nova praga. Ao todo foram dez. O que nos chama atenção nesse episódio é a forma com a qual o Faraó recebe cada uma delas: a cada praga enviada, ele se torna mais forte e mais opressor, e isso se repete da primeira à nona praga, e, então, por último, Deus resolve atingir o Faraó em seu lugar de gozo, e tira-lhe seu filho.  Então, o poder faraônico sucumbe, e o povo parte.

Trouxemos as narrativas desses três personagens (Deus, Abraão e Faraó) pelo caráter da situação extrema que cada um se envolve, dentro de uma relação pai e filho: o amor de Deus pela humanidade é comprovado por meio do filho; a fé de Abraão é testada via o filho; o poder do Faraó é posto em xeque através do filho. Com isso, ficamos à vontade para inferir que no filho pode estar o gozo mais sublime que o pai pode alcançar.  Do mesmo modo, a partir dessas três personagens, chega-nos com grande clareza que o maior dos sacrifícios parece estar em abrir mão do próprio gozo ou daquilo que lhe confere esse lugar. Para o Faraó isso foi insuportável.

O caminho mitológico que percorremos até aqui é de suma importância ao que pretendemos construir daqui para frente, pois é de nosso saber que sem ele a compreensão de nossa proposta de trabalho poderia ficar comprometida. Chegamos, assim, na melhor parte do bolo, isto é, no complexo de Caim.

O primeiro assassinato na história da cultura cristã é marcado por uma relação triangular: de irmão com irmão, de filho com pai e de pai com filho. Nessa relação vemos um pai (Deus) que se agrada (gozo) de um filho (Abel) e de sua oferenda. Por outro lado, vamos ver o oposto: um pai que não se agrada de seu outro filho (Caim) e nem de sua oferenda (motivo do crime).  Esse ponto é crucial para nós. A riqueza da linguagem analógica contida aí nos permite chegar a várias afirmações, mas, por ora, se concluirmos que Caim e Abel são duas personagens que sintetizam a relação psíquica entre pai e filho, entre o indivíduo e a lei, daremo-nos por satisfeitos.  No âmago da questão, o mesmo filho que confere o lugar de gozo ao pai, é o mesmo que ameaça e confronta esse lugar. Nessa perspectiva, o lado Caim é extremamente desagradável ao pai. É desagradável porque tem a função de por em xeque o poder fálico paterno; é uma forma natural de testar esse poder antes de a ele se submeter.   Desse modo, sinto-me à vontade para dizer que o crime não é contra a vida do pai, mas, sim, contra o seu lugar de gozo (Abel).  Essa questão nos é cara porque ela nos põe diante de outra: o amor do bebê pela mãe, conforme sinaliza Freud. De certo, nenhuma ferramenta nos é dada para refutar esse amor, todavia o concebemos mais como um afrontamento ao pai do que por um desejo sexual pela mãe, conforme aponta Freud em O Complexo de Édipo.

O episódio do caso José do Egito (Gênesis 37) nos traz elementos que nos faz prosseguir firmes em nossa visão: o personagem bíblico Jacó tem 17 filhos, mas José é o que mais ele amava, e por isso ele lhe será tirado por seus irmãos, que o vendem aos ismaelitas. A priori, é nos dado que eles não assassinam José, mas forjaram uma morte perante seu pai, dizendo que os lobos o devoraram. Afetado em seu lugar de gozo, Jacó se recolhe e faz luto por muitos anos e não conseguiu ser mais o mesmo.

Se pensarmos também no caso do filho pródigo (Lc. 15: 11-32), veremos também, sem grandes esforços, que o retorno deste rende gozo ao pai, contrapartida, revolta ao irmão.

Saindo dos exemplos mitológicos, apuremos em torno de nossa realidade cotidiana: quem nunca se pegou, quando criança, praticando algum tipo de malvadeza contra o irmãozinho? Do mesmo modo, quem nunca presenciou, em uma empresa, o colega de trabalho sofrer retaliações e segregação por parte dos colegas de trabalho, simplesmente por ser o (a) queridinho (a) do (a) chefe?  Esse é um comportamento presente em todo grupo que tem um líder (pai). O querido desse líder sempre estará sujeito a castigos por parte dos componentes do grupo. E isso se explica via o complexo de Caim.

Mitologicamente ou não, muitos são os exemplos que podem nos manter fieis a nossa linha de raciocínio, mas, por ora, já temos o suficiente para concluir que o crime de Caim não consiste no assassinato de Abel, mas no afrontamento da lei. Isso atende ao princípio básico do código de lei de toda e qualquer sociedade: “nenhum ato é criminoso até que não afronte a lei”. Falando em lei, é interessante notar que a penalidade que recai sobre Caim aponta para o fato de que ele será um fugitivo errante sobre a terra, em outras palavras, sem pai não há parâmetro. É aqui que entra a nossa sociedade: os valores éticos, familiares e culturas, que tínhamos como parâmetros à vida, foram confrontados e violados, e a impressão que dá é que está todo mundo perdido em fugas sem direção.

Nessa sociedade, o parâmetro é a ideologia que assegura que você é livre para fazer e ter o que quiser. Só depende de você. É o sujeito condenado a ser livre de Sartre cada vez mais se atualizando. É impressionante como as pessoas sacrificam as suas vidas, em uma dura e árdua jornada de trabalho, em busca de uma “terra prometida” que provavelmente nunca vão alcançar. Jamais se viveu no Egito como se vive nos dias atuais, e o poder faraônico, meio que no movimento da Fênix, ressurge em forma de capitalismo. Mais inteligente, desfaça a sua crueldade na distribuição de um falso lugar de gozo (sopa de cebola), do qual ninguém quer abrir mão. E sossego do consumismo se torna total, onde está a décima praga?

 

Considerações finais:

O maior interesse desse trabalho não consistiu em concordar ou discordar de Freud em relação ao assassinato original. Tudo o que fizemos foi partir de narrativas mitológicas diferentes para explicar uma mesma realidade psíquica, atestando, desse modo, à eficácia e atualização (mesmo que de forma inconsciente) do mito na vida das pessoas. O fato de termos nos oposto a Freud em alguns momentos em nossos achados, fortalece essa natureza do mito como linguagem analógica, que não se esvazia de significado, em uma mera interpretação. O significado que conseguimos absorver no mito dos irmãos, Caim e Abel, é fruto da aproximação que fizemos dele com um campo de leitura específica, a saber: a psicanálise. O fato de Freud encontrar no complexo de Édipo elementos que lhe ajudou a sustentar a figura de um pai ameaçador, não nos chega como estranhamento, visto o complexo de Caim nos conduzir a essa mesma perspectiva, porém em um caráter de via dupla, ou seja, ao filho também não escapa esse lugar, pelos motivos já mencionados. E isso é o que trouxemos de novidade para o nosso trabalho, que, em parte, responde as nossas perguntas iniciais.

 

Referência

 

QUINODOZ, Jean-Mechel. Ler Freud: guia de leitura da obra de S. Freud.  Porto Alegre, ed. Artmed, 2007, pp. 77,118.

FREUD, Sigmund. Três Ensaios sobre Sexualidade (1905). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud.  Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. VII, Ed. Standart Brasileira. 

VERNANT, Pierre Jean. O mito e a religião na Grécia antiga. Lisboa, ed. Teorema, Lda, 1991.

FARJANI, Antonio. A linguagem dos deuses: uma iniciação à mitologia holística. São Paulo, ed. Pontes, 1992, pp. 15-18.

Bíblia de Jerusalém. São Paulo, ed. Paulus. 1973. 

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