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PSICOLOGIA E COMPORTAMENTO

O TRAUMA DE EGÍDIO

Por Djalma Andrade

 

Dias atrás, estava com minha namorada em uma praça. Lembro que estávamos sentados e libávamos um delicioso acarajé; era noite. A rua era a única coisa que nos separava de um senhor, que fizera da calçada seu lugar de aconchego. Ele estava ali, logo em nossa frente. Não estava só. Em um carrinho de supermercado, havia um cachorrinho preso por um pedaço de corda.  Entre uma conversa e outra, a minha namorada me perguntou: “mô, por que a maioria dos mendigos tem um cachorro”? A resposta foi imediata e automática: porque todo ser humano precisa de um olhar. Logo em seguida, dei-me conta da natureza da resposta. Nunca havia lido nem ouvido nada a respeito, mesmo assim estava convencido da consistência da resposta. Estranho! Primeiro a gente responde, depois a gente pensa. Uma vez Descartes disse: “penso, logo existo”. Em resposta, vem Freud: “penso aonde não existo”. Sabe, associando a minha resposta à afirmação de Freud, concluo que o inconsciente pode ser sim um bom livro de cabeceira.

O mendigo tinha um cachorrinho, um único olhar; com Egídio não era muito diferente. Egídio tinha pessoas, mas em sua concepção, todas tinham um mesmo olhar quando se tratava dele. Egídio tinha um trauma.

Ninguém tinha conhecimento do trauma de Egídio, somente sabiam que não podiam esboçar comportamento de riso ou algo do gênero em sua presença. Ele não tinha amigos. Numa vida pacata no interior, passou sua infância dentro de uma pequena casa, onde dividia o espaço com seus pais e seus quatro irmãos. Egídio foi uma criança normal. Como toda criança, Egídio fazia “xixi” na cama, mas isso não foi por muito tempo. Certo dia, ainda quando tinha três anos de idade, ao se acordar, percebe que as roupas de cama não estavam molhadas. Naquela noite, Egidio não havia urinado na cama. Contente, ele vai até seus pais e conta o ocorrido. Então seu pai o toma nos braço e fala para a criança que foi porque, enquanto ela dormia, durante a noite, ele cortou seu “pinto”. Egídio era o filho caçula, seus irmãos eram pró-ativos, faziam amizade, saiam e namoravam. Egídio nunca namorou. Na escola, Egídio tinha as melhores notas da classe. Ele estudava pra isso. Na hora do recreio, ele permanecia dentro da sala, estudando.

Todo mundo notava seu comportamento. E até comentavam: “estranho esse menino, num é”? Alguns até diziam que ele tinha um encosto: “é, deve ser o encosto do avô”. Entre encosto pra lá e estranheza pra cá, Egídio via o mundo se afundar dia após dia. Seus pais se preocupavam, e até chegaram a levá-lo ao médico, porém nada fora diagnosticado. O que fazer? Em meio a tantas perguntas, um menino sugado pelo quê?

Depois de completar vinte anos, querendo fugir de toda aquela gente e, por tanto, da realidade, Egídio, com o apoio de seus pais, resolve ir embora para a cidade grande. Já na cidade, acreditando ter se libertado do fantasma, procura fazer amizades, todavia não demorou muito tempo para que ele percebesse que o fantasma também fizera parte da bagagem de viagem. O pesadelo agora estava na cidade grande. Fantasmas gostam de viver nelas.

Os vizinhos começaram a notar o comportamento de Egídio. Nesse caso, as rotulações são inevitáveis. Mas Egídio precisava se relacionar. Precisava trabalhar, estudar. Precisava viver. Seu trauma era seu único companheiro. Em Egídio não havia força pra mais nada, nem mesmo pra chorar. Além de tudo, ele tinha que lidar com a ideia de ser sustentado por parentes. Um dia seus pais foram visitá-lo, mas ele não quis recebê-los. Egídio estava entrando no primeiro estágio daquilo que conhecemos por depressão.

Comovida com o sofrimento de Egídio, uma vizinha o aconselhou a procurar um psicólogo. A priori ele achou a ideia abusiva. “Psicólogo é coisa pra doido, eu não sou doido”, pensou Egídio. Mas, depois de refletir bem...  Conversou com sua família, e esta concordou que ele deveria procurar ajuda em um profissional. Na altura do campeonato, Egídio já não era o mesmo. Estava empolgado, e via nisso uma possibilidade para o fim do sofrimento. Já fazia até planos.

Devido ao seu histórico de vida, Egídio tinha certeza de que deveria ser acompanhado por um bom psicólogo. Se possível, o melhor de sua cidade. Então sai a procura desse profissional: em jornais e algo do gênero.

Não demorou muito pra Egídio encontrar o psicólogo que, realmente, segundo ele, poderia lidar com suas questões. Anotou o endereço, o nº do prédio, da sala e, na segunda feira, partiu Egídio, feliz e contente, ao encontro de sua suposta salvação. No caminho, Egídio até compôs uma música. Contentemo-nos apenas com o refrão: “agora eu arrumo uma namorada”. Egídio estava mesmo motivado.

Quando chegou ao local, precisamente às 9:00h, Egídio se dirige ao prédio. Este tinha 15 andares, a sala para a qual estava indo ficava no último. Então ele entra no elevador, e ali estava a ascensorista a ler um livro: Jesus, o maior psicólogo que já existiu. Egídio fixou o olhar no livro. Parece ter sido tocado. A sua fisionomia se transforma. Maravilhado pelo que via, Egídio, que nunca havia se dirigido a uma mulher, que não fosse de seu convívio, não hesitou em perguntar à moça aonde ele poderia encontrar aquele psicólogo. Em um tom de voz suave, com um disfarçado riso entre os lábios, ela fala pra ele o endereço e os possíveis horários de atendimento. Quando ainda tomava nota, o elevador chegou ao andar da clínica, na qual Egídio daria início ao seu tratamento. Ele sai do elevador e, enquanto procura a sala, vai tomando nota do endereço que a moça havia lhe passado.

Ao terminar de tomar nota, ergue a cabeça e, logo aí, ao seu lado, estava a sala que procurava. Ele para... olha para a porta da sala e se indaga:        “entro ou não entro”? Tomado por uma espécie de dúvida, que se misturava a certa resistência, Egídio tinha em suas mãos um pedaço de papel. Não se tratava simplesmente de um papel. Para ele, era algo mágico, era um endereço, no qual poderia encontrar o melhor psicólogo que já existiu... nessa altura, não conseguia mais enxergar a porta da clínica, ele queria o melhor profissional, e se convenceu de que este não estava ali, naquela sala. Estava em suas mãos, em forma de papel. Egídio olha para os lados e, antes de colocar o papel no bolso, dá uma última olhada, lê mais uma vez o que está escrito, dá meia volta, dirige-se para o elevador, chama-o, e vai embora, cantando: “agora eu arrumo uma namorada”.

Egídio vai para casa. O dia passa. A noite chega. Enquanto dorme, sonha construindo uma casa sobre uma imensa árvore, mas que não possui nem galhos e nem raízes. A casa também era imensa, com vários quartos, salas, cozinhas, porém era uma casa sem banheiro. O dia amanhece, Egídio acorda. E, ao se lembrar do sonho que tivera durante a noite, é tomado por uma sensação de angústia. Dessa forma, passa o dia ruminando o sonho. Ele não consegue imaginar uma árvore sem raiz e sem galhos... por mais que se esforce, tudo que vem à mente não passa de um imenso tronco de árvore. Do mesmo modo, ele também não consegue imaginar uma casa com várias cozinhas, muito menos poderia visualizá-la sem banheiro.

No dia seguinte, ele acorda cedo; é dia de ir, pela primeira vez, ao melhor psicólogo que já existiu. Toma o papel e parte para o endereço que aí está. Como sempre, cantando: “agora eu arrumo uma namorada”.

Ao chegar ao local indicado, Egídio percebe que algo de errado está acontecendo, no mínimo algum engano. Aquele endereço o levara a uma igreja: “uma igreja, não é possível, que psicólogo trabalharia em uma igreja?” se pergunta Egídio. Toda alegria de Egídio terminaria ali, naquele momento: “fui enganado pela aquela moça, é por isso que eu nunca quis aproximação com moças, mulher só serve para enganar o homem, não tem jeito não, é o ranço da tal da Eva”, pensou ele.

Decepcionado, Egídio estava ali. Em sua frente, uma igreja, nas mãos, um pequeno e amassado pedaço de papel, no rosto um olhar perdido e distante. Então Egídio decide entrar na igreja. Em passos lentos, ele se dirige ao templo. Todavia, esses passos são apressados a partir do momento em que ele vê uma moça saindo da igreja, ele a reconhece, era a moça do elevador. Egídio se aproxima da moça, ela o nota e, antes mesmo que ele esboçasse alguma ação, ela se antecipa e fala: “o psicólogo está ali, no altar”. Nesse exato momento, a “ficha” de Egídio caiu, ele se deu conta de que não se tratava de um Jesus profissional, mas de um Jesus da fé. Egídio não tinha fé.

Sem fé, lá estava Egídio dentro de uma igreja, a olhar para o altar. O culto havia acabado. A igreja estava vazia. Alguns jovens ainda estavam ali, desmontando os instrumentos musicais. Apesar de o ambiente ser diferente, nada chama a atenção de Egídio. Então ele se senta, baixa os olhos e começa a contar os dedos. Não desejava olhar para nada, o chão e o silêncio lhe bastavam.  O barulho de um chinelo, que se arrasta pelo chão, vindo em sua direção, rasga o silêncio.

O barulho do chinelo se aproxima de seus ouvidos, mas isso não é o suficiente para fazer com que ele erga a cabeça. Uma mão estranha sobre seu ombro e uma voz dizendo bom dia, interrompe a concentração de Egídio. Era uma jovem. A suave mão da jovem sobre seu ombro lhe causa uma espécie de paralisação. Tomado por uma respiração ofegante, Egídio busca palavras para responder ao bom dia, mas de seus lábios trêmulos não se tem nem um sinal de voz: o toque suave de uma moça havia “congelado” um corpo, o corpo de um rapaz.

A moça percebe o desconforto daquele rapaz e pergunta se está tudo bem, se ele não gostaria de tomar um copo d’água. Ainda trêmulo, tudo que Egídio consegue pronunciar não se prolonga além de um eu quero ir ao banheiro; então a moça chama um  amigo,  para que o conduza até ao banheiro, mas quando o rapaz chega, Egídio diz que não precisa mais, pois a vontade de ir ao banheiro havia passado.

Aos pouco Egídio vai se recompondo, vai retomando a normalidade de sua respiração e das palavras. Egídio então resolve explicar o motivo pelo qual ele estava ali. Ainda quando falava, é interrompido pela moça: “você veio para o lugar certo, foi Deus quem te trouxe aqui, em Jesus você encontrará a cura”, disse a moça. Mas para Egídio, nada daquilo fazia sentido, ele não acreditava, não tinha fé. Mas, naquele momento, uma coisa o impressionava: a atenção que os jovens lhe prestavam. Mas quando a moça lhe pergunta aonde mora, ele brinca e diz que no céu. Os jovens riem com a resposta. Frente aos risos, Egídio se sente incomodado e, de forma muito áspera, pergunta o motivo da risada. A partir de então, não havia mais clima pra conversa, e é em meio a esse cenário de emoção que Egídio deixa a igreja.

Egídio volta pra casa chateado. Em seu pensamento, era uma chateação justa, pois havia ido em busca de ajuda e não de pessoas para rirem dele. Nesse dia, Egídio fora tomado por um estado de ansiedade nunca vivenciado.

Passaram-se três dias, mas não saiam de sua cabeça os jovens da igreja. Convenceu-se de que eles foram legais para consigo, e isso o torturava. Torturava porque ele foi áspero para com os jovens. Egídio queria voltar lá. Queria se desculpar, mas sabia que não tinha coragem para tanto.

Durante três dias, Egídio pensou na possibilidade de retornar à igreja e se desculpar. Mas não sabia como fazer isso. É aqui que Egídio toma uma decisão, a grande decisão: parar as atividades, deixar de dormir e utilizar todo o tempo para ensaiar o pedido de desculpas. Ele queria fazer isso da melhor maneira, sem erros, sem gaguejar, então ensaiou durante três meses.

Com o pedido de desculpa na ponta da língua, Egídio volta à igreja, era uma manhã de sábado. Quando chega à igreja, estava acontecendo um culto... Egídio olha, olha... mas não consegue visualizar os jovens. Então ele vai para frente, onde se senta próximo ao altar. Os jovens estavam ali, no coral. Meio que envergonhado, Egídio fica por ali, a olha de um lado para o outro. É nessa inquietude de olhar que ele percebe uma senhora em pé, sem assento. Egídio esboça um gesto de cavalheirismo e disponibiliza seu assento àquela senhora, e volta para a parte de trás da igreja, onde nota que, ao seu lado, estava um policial fardado. Egídio olha e olha para o policial: começa a ficar trêmulo, as mãos vão ficando geladas e as pernas não mais são o melhor suporte ao seu corpo. Já com as vistas turvas e sem sentir firmeza nas pernas, Egídio tenta se segurar no banco, mas nado o impede que ele desmaie ali mesmo, ao lado do policial.  

As pessoas se agitam, e buscam reanimar Egídio. O culto para, e Egídio é levado para uma sala, onde acorda sob os cuidados dos dois jovens, aos quais ele devia pedidos de desculpas. Ainda assustado, ele queria saber onde estava, o que havia acontecido. Preocupado com a situação, ele se esquece do esperado momento, o qual culminaria no tão ensaiado pedido de desculpa. Egídio não pediu desculpas.

O acolhimento que tivera na igreja foi o suficiente para fazer de Egídio um membro daquele templo. Então passa a frequentar os cultos. Três meses depois, Egídio já fazia parte do coral, Egídio parecia ter fé... o melhor psicólogo que já existiu estava ai, em sua frente, no altar: Egídio havia encontrado a solução para seu problema.

Com o passar do tempo, a vida de Egídio foi se organizando: conseguiu trabalho, voltou a estudar e passou a fazer o que nunca havia feito, amizade. Mas Egídio não queria parar por aí, tinha planos mais sérios: conseguir uma namorada, casar-se e ter filhos.

Na igreja, Egídio aceita ser batizado. Daí por diante, ele passa a ser chamado de o varão de Deus; no entanto, isso não aparenta ser música aos seus ouvidos, e demonstra certo desconforto quando assim o é chamado. Mas nada que venha atrapalhar o melhor momento de sua vida. Momentos de realizações e de planos. Planos estes que aproximavam, cada vez mais, Egídio de uma moça. Para ele, era uma moça encantadora. Egídio nunca havia achado ninguém encantador, nunca tinha se apaixonado. Agora sim, percebia que podia vivenciar esse sentimento. Egídio estava apaixonado. Apaixonado pela moça do elevador, a mesma do livro, a mesma do melhor psicólogo que já existiu.

Egídio quer falar de seus sentimentos à moça, mas não sabe como o fazer. Ainda se sente tímido, e tem medo de cometer erros, de gaguejar. Tudo o que ele não quer é perder a oportunidade em um vacilo. Então Egídio pensa em um plano, e este seria ensaiar, dia e noite, o que falar, como falar. Egídio põe o plano em ação, e ensaia durante três semanas.

Com tudo planejado, parte Egídio para a igreja, era uma noite de terça-feira. Ao chegar à igreja, senta-se a distância de um banco aonde se encontrava a moça. Ela estava logo aí, a sua frente, a conversar com uma amiga.  Estão conversando justamente sobre um tema que muito interessa a Egídio, é sobre namoro. Ele fica atendo a conversa, dá pra escutar tudo. Então a amiga da moça pergunta se ela está namorando, e a moça diz que não, mas que está à procura de um namorado, mas que não pode ser qualquer namorado: “tem que ser um homem varão, eu sou uma mulher de Deus e só posso namorar varão”, diz a moça. Ao ouvir isso, Egídio é tomado por uma profunda angústia. Angústia que ele desconhece a origem. Com o semblante de decepção, ele deixa a igreja, na qual ele jamais voltaria.

Trinta dias depois, Egídio pede demissão no trabalho. No dia seguinte, arruma suas malas, despede-se dos parentes e volta para o interior... Hoje, tudo que sabemos de Egídio é que ele se enforcou, no banheiro, enquanto tomava banho. Egídio se suicidou!

Certa vez me perguntam por que as pessoas se suicidam. Eu tive que pensar para responder. Pensei, pensei e pensei... pensei e criei o personagem Egídio. Dessa vez a resposta não foi automática, mas não diferente do mendigo, todo bom livro de cabeceira precisa de um olhar. Olhar que transforme em conteúdo o mistério das palavras, que dê sentido a cada página, sobre a qual pesa a falta do que não fora escrito. Se você acha que pode transformar igreja em espaço terapêutico, cuidado! Porque todo bom livro é composto de faltas e excessos.  O trauma de Egídio!

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