top of page

MÚSICA

HÁ UM MENINO

Djalma Andrade






Há muito, o psicólogo Carl Gustav Jung afirmou haver uma força invisível dentro do ser humano, sendo esta por ele denominada de anima e animus. Segundo Jung, a anima corresponde ao lado fiminino presente tanto na mulher quanto no homem. Opostamente à anima, o animus representa o lado masculino, também presente tanto no homem quanto na mulher. Na elaboração de tal teoria, o psicanalista vai além e sustenta haver uma relação estreita da mesma com o nosso cotidiano: as nossas realizações, bem como profissional... humana em geral, passam pelo crivo de nossa relação com ambas as forças (anima e animus). Em outras palavras, Jung busca dizer que ruína e salvação caminham de mãos dadas, e que a nossa inclinação tanto para uma quanto para outra, depende do grau de integração existente entre indivíduo/anima/animus. Isso porque ele parte do seguinte pressuposto: a força que mata é a mesma que cura.
 

Para inicío de conversa, é louvavél o pensamento junguiana, todavia, aqui, ele não é o nosso foco. Busquei-o como ponto de partida para falar a respeito da precisa composição de Milton Nascimento: “bola de meia, bola de gude”. Nela, assim como Jung aponta para a força invisível existente no humano (anima/animus), o compositor também assim o faz, e atribui tal força ao lado “criança” que há em cada ser humano.

Há um menino
Há um moleque
Morando sempre em meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem para me dar a mão...

Se por ventura podéssemos, um dia, perguntar a Sócrates o que poderia arruinar a vida de um adulto, certamente ele responderia: os exageros aos quais expomos a nossa vida. Tal pressuposição se sustenta no que dizia o próprio Sócrates: “a virtudo está no meio”. O filósofo compreendia que viver virtuosamente é igual a buscar o equilíbrio das coisas, dando a cada situação seu valor cabível.

Nada mais, se não uma insensatez intelectual, deixaria às margens da percepção a coerente relação entre o “meio termo” de Sócrates e o “adulto que balança” de Milton Nascimento: balançamos todas às vezes que comentemos exageros. É o exagero da “seriedade” pela qual “encaramos” a vida e seus acontecimento. O ser humano se sufoca em sua própria rigidez... é homem máquina, é a máquina homem que, não se permitindo a errar, acerta na construção de um mundo inseguro e solitário: o mundo do adulto. Na busca pelo controle, o indivíduo criou um mundo descontrolado, a ponto de ele mesmo afirmar: “só Jesus Salva”. Se tal afirmação possui verdade, que este Jesus seja o Jesus menino, pois o Jesus adulto há muito foi suspenso no egoísmo da humanidade.


Atribuir a salvação da humanidade à força externa e imaginária é o reflexo de uma sociedade regida pelo superficialismo, que perdera o contato com o mundo interno, onde habita o poder de transformação, o vigor e a simplicidade do menino moleque existente em nosso ser como parte geradoura da energia pisíquica.

(...) á um passado no meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a pruxa me assombra
O menino me dá a mão
Ele me fala de coisa bonitas
Que eu acredito que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor
Pois não posso, não devo,
Não quero viver como toda essa gente insiste em viver
Não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem ser coisa normal...

Para muitos, que bom seria se podesse deletar de sua mente determinadas experiências de seu passado, principalmente as de infância: são experiências traumáticas que envolvem abusos, medos, abandonos etc. As feridas são muitas e, infelizmente, são determinantes na construção da personalidade do indivíduo (o trauma é uma lente pela qual enxergamos o mundo). Uma criança que sofre qualquer ordem de abuso, por exemplo, tem a probabilidade de crescer se relacionando com o mundo sempre se colocando em posição de inferioridade. Geralmente essas pessoas não se acham dignas nem tampouco capazes de obter êxito na vida. Foram paralizadas pela força dominadora de seu abusador.

Em muitos casos, o traumatizado cria meios para fugir de seu passado, aderindo, assim, a uma pseudoverdade a respeito de si. Mas nos é sabido que esse não é o melhor caminho a ser tomado... é como, ao varrer uma casa, você coloca o lixo abaixo do tapete. A casa fica limpa, todavia você sabe que a sujeira está alí, em algum lugar. E assim acontece com as pessoas que prucuram esconder um passado traumático. Elas buscam “maquiar” a vida. Criam novas verdades, porém sabem que o “fantasma” está alí, e a qualquer momento pode se revelar (bruxa que assombra). Para tanto, esse é um momento delicado em sua vida. É o momento das crises, onde se cristaliza o conflito entre a verdade do passado com a falsa verdade do presente. A verdade que se traz de um passado difícil incomoda (um sol bem forte lá no meu quintal). Em muitas culturas, especialmente na cultura ocidental, fortemente influenciada pelo platonismo, que mais tarde serviu de base ao cristianismo, o sol simboliza a mais pura da verdade.

Encarar tal verdade em busca de reconciliação com um passado traumático implica num processo árduo, onde requer força de vontade e coragem. Coragem para voltar à criança que um dia fora ferida. No retorno à criança doente, o nosso atulto se encontra com o outro lado da criança sadia. Nele, o adulto recupera todo um mundo de valores indispensáveis à vida (amizade, respeito, caráter, bondade e amor), diferentemente do mundo que lhe fora apresentado pelo seu abusador ou outras experiências negativas vividas na infância. Desse modo, no processo terapêutico, o indivíduo é terapêuta de si. Ao psicoterapeuta cabe acompanhar o processo.

 


Felizmente, apesar da exposição da criança às experiências traumáticas, há nela um lado inatingível do qual provem toda energia psíquica, por mim denominado fonte geradora. Há na criança um outro lado atingível, e por isso precisa de energia quer para agir, quer para se recompor; é o lado receptor. Acontece que, quando a criança é submetida à qualquer experiência traumática, ela deixa de ter uma vida normal de criança, tornando-se parte de seu trauma. Assim, é alterada a relação entre o lado gerador e o receptor. Visando a superação do trauma, este último exigirá do primeiro a produção de energia além do natural, o que não será possível. Desse modo, mediante a tal relação, onde se consume além do que se gera, estabelece-se um desgaste de energia e, por conseguinte, psicológico. É aqui que nasce a criança doente, o adulto fracassado e problemático de amanhã.

Acompanhei um caso onde A.S., quando criança, fora abusado sexualmente pelo irmão mais velho. Acontece que, dias depois do ato abusivo, A.S. passou a ter visões e ouvir vozes. Certamente, principalmente para os leigos no assunto, tal fenômeno ganhara caráter místico. Todavia, na esfera científica, nada há de místico no caso de A.S..

Por a criança ser uma personagem inofensiva, quando atingida psicologicamente, o seu cérebro tem o poder de criar um novo mundo, onde as experiências deste tira de foco a tortura da realidade, isto é, do abuso; tal ação tem finalidade protetora. O negativo disso é que as energias geradas para atender as necessidades normais para o desenvolvimento psicológico e fisiológico da criança, são focadas na criação de realidade (visões, ouvir vozes) onde a criança possa se sentir protegida, mas, infelizmente, seu desenvolvimento, principalmente psicológico, ficará comprometido. No caso de A.S., quando adulto, herdou de tudo isso um forte complexo de inferioridade que comprometeu as relações intras e interpessoais. Hoje, depois de um árduo processo terapêutico, A.S. se reconciliou com seu passado, libertando-se do complexo e, por conseguinte, do“fantasma”.

(...) Bola de meia, bola de gude
O solidário não quer solidão
Toda vez que a tristeza me alcança
O menino me dá a mão
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto fraqueja
Ele vem pra me dar a mão.

Em sua pureza, a criança é solidária. E, de todo modo, como ninguém, ela sabe dizer não a solidão. É inútil qualquer esforço que se faça para convencê-la de que seu mundo é “fantasioso”. Jamais ela acreditará nisso. Mas o que há de fantasioso no mundo da criança? Simplicidade, amar, “sonhar”, sorrir, imaginar, criar, incluir, acreditar, brincar, seria tudo isso ilusório? Não! Este é o mundo verdadeiro, onde ainda se pode encontrar uma face para sorrir. Aqui, o riso expressa vida.

A criança é solidária consigo. Ela não quer solidão, isto é, não quer preconceito, prepotência, egoismo, competitividade. Esse é o nosso mundo, o mundo do adulto, onde não mais se encontra uma face para sorrir, mas sim um riso para desfarçar a tristeza de uma face.

Apesar de tudo, nada é o fim. Há dentro de nós essa criança que um dia fomos. E é a importância que damos a isso que irá definir o tipo de riso em nossa face.


 

© 2023 by WRITER'S INC. No animals were harmed in the making of this site.

  • facebook-square
  • twitter-bird2-square
bottom of page